O genocídio dos índios Yanomami pelo governo de extrema-direita de Jair Messias Bolsonaro foi há muito anunciado. Poucos, muito poucos, no entanto, levaram a sério as ameaças à tribo Yanomami professadas por um parlamentar sem brilho, sem decoro e sem o menor traço de humanidade. O resultado, agora, invade a mídia neste início de 2023. E coube ao escritor e jornalista Lira Neto em coluna assinada no jornal Diário do Nordeste no último dia 24 de janeiro de 2023 apresentar os fatos cronológicos deste verdadeiro crime contra a humanidade.
Na foto de Ricardo Stuckert, da Presidência da República, agora sob o comando de Luiz Inácio Lula da Silva, a beleza serena de um Yanomami:
Como Bolsonaro planejou extinguir a reserva Yanomami
Lira Neto*
O plano teve início há cerca de 30 anos. Em 19 de outubro de 1993, uma terça-feira, em Brasília, o deputado Jair Bolsonaro, do Partido Progressista Reformador (PPR), legenda então liderada nacionalmente por Paulo Maluf, apresentou, na Câmara Federal, um projeto de decreto legislativo.
Protocolado sob o número 365, a proposição buscava tornar sem efeito um decreto presidencial, homologado no ano anterior por Fernando Collor de Mello sob recomendação da Funai, criando a reserva Yanomami. O projeto de Bolsonaro, que à época exercia o primeiro mandato de deputado federal, tinha apenas dois curtos artigos.
“Torna sem efeito o Decreto de 25 de maio de 1992, que homologa a demarcação administrativa da terra indígena Yanomami”, dizia o primeiro deles.
“Este Decreto Legislativo entra em vigor na data de sua publicação, revogando as disposições em contrário”, sentenciava o segundo.
Nos meses anteriores à apresentação do projeto, o deputado novato estivera em destaque nos jornais, por ter sugerido, em visita ao município gaúcho de Santa Maria, o fechamento do Congresso Nacional e a implantação de uma ditadura no país, nos moldes da instituída no Peru por Alberto Fujimori, segundo noticiou o jornal Zero Hora.
“Sou a favor, sim, de uma ditadura, de um regime de exceção”, confirmou, em plenário, quando confrontado pelos colegas na volta à capital federal.
De acordo com o que ficou registrado nos Anais da Câmara, choveram protestos, apartes, indignações. Foi um escarcéu.
“Corremos o risco de promover o deputado Jair Bolsonaro se começarmos a falar demais sobre ele”, observou no calor da contenda, profético, um parlamentar.
Ameaçado de cassação por falta de decoro, a figura caricaturesca de Bolsonaro foi motivo de reportagens, assunto para inúmeras notinhas em colunas políticas, convites para entrevistas em programas de tevê. A exposição gratuita alimentou novas bravatas.
“Para acabar a crise brasileira, basta três batalhões de infantaria”, argumentou ele à época, segundo o Jornal do Brasil, atraindo ainda mais atenções públicas para si.
Publicado na edição do Diário do Congresso Nacional de 10 de novembro de 1993, o projeto de Bolsonaro para a extinção da reserva Yanomami dormitou nas comissões internas da Câmara e, aparentemente natimorto, foi arquivado ao final da legislatura, conforme previsto no artigo 105 do regimento da casa.
Em 1995, reeleito como o terceiro deputado federal mais votado no Rio de Janeiro, Bolsonaro solicitou o desarquivamento da proposição. E conseguiu.
Encarregado de reanalisar o texto na Comissão de Defesa Nacional, o deputado Elton Rohnelt, do Partido Social Cristão (PSC) de Roraima, ex-diretor de uma madeireira e dono de uma empresa de mineração, deu parecer positivo.
No currículo extraparlamentar de Rohnelt constava a invasão, na década de 1980, sob sua assumida liderança, por parte de 40 mil garimpeiros às terras dos Yanomamis. De acordo com o relatório da Comissão da Verdade, houve centenas de mortos em decorrência do ataque.
Bolsonaro tinha pressa. Com apoio de 257 colegas deputados, o que lhe garantia o número regimental necessário, solicitou urgência para a votação do projeto em plenário.
Em 30 de agosto de 1995, o presidente da Câmara, Luis Eduardo Magalhães, do Partido da Frente Liberal (PFL), acatou a solicitação, sob protestos da bancada oposicionista.
Fernando Gabeira, deputado pelo Partido Verde (PV), ponderou: tema tão sensível não poderia ser analisado de afogadilho.
“A demarcação das terras indígenas é tão delicada quanto a promoção da paz entre os palestinos e israelenses”, comparou, de acordo com o registro dos anais parlamentares.
“Há vidas humanas extremamente vitimadas por uma política de genocídio em nosso país”, advertiu a deputada Socorro Gomes, do Partido Comunista do Brasil, eleita pelo Pará.
O também paraense Gerson Peres, correligionário de Bolsonaro do PPR e votando pela liderança, divergiu da conterrânea: “Não temos mais nada a discutir, isso é o que queremos. Acompanhamos o nosso companheiro deputado Jair Bolsonaro. O PPR, portanto, encaminha o voto ‘sim’”.
Após intensa discussão, o regime de urgência foi rejeitado: 290 deputados votaram contra; 125, a favor. Houve 10 abstenções.
Depois de regressar às comissões internas, recebendo pareceres negativos dos deputados Fernando Gabeira e Almino Afonso (PSB), o projeto foi mais uma vez arquivado. Nem assim Bolsonaro desistiu do objetivo.
“A Cavalaria brasileira foi muito incompetente”, ele esbravejou, na sessão da Câmara de 16 de abril de 1998, então filiado ao Partido Progressista Brasileiro (PPB). “Competente, sim, foi a Cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema no país”.
Eleito pelo PPB para um terceiro mandato no final daquele mesmo ano, Bolsonaro repetiu a manobra e pediu um segundo desarquivamento do projeto. De novo, a proposta estacionou nas instâncias internas, sendo arquivada pela terceira vez ao final daquela legislatura.
No início de 2003, decorridos dez anos da proposição inicial, já no quarto mandato e filiado ao Progressistas — fusão do PPR com o Partido Progressista (PP) —, o deputado continuava com a mesma ideia fixa.
Solicitou mais um desarquivamento, mas o projeto de extinção da reserva Yanomami não avançou na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania. Foi de novo posto de molho, para ser arquivado, em definitivo, no final de 2007, após 14 anos de idas e vindas.
Passaram-se outros dez anos. Em 2017, candidato à presidência da República pelo Partido Social Liberal (PSL), Bolsonaro deixou claro o propósito de dar combate aos povos originários: “Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena”, anunciou.
No cargo de presidente, em 2020, propôs o Projeto de Lei 191 — o “Projeto de Lei do Genocídio”, como batizado pelos adversários —, também assinado pelos ministros das Minas e Energia, almirante Bento Albuquerque, e da Justiça, Sergio Moro, autorizando o garimpo e o agronegócio em áreas indígenas.
Pressões da sociedade civil e das comunidades indígenas mantiveram o texto na gaveta. Enquanto isso, conforme revelou o site The Intercept Brasil, 21 ofícios com pedidos de ajuda dos yanomamis foram ignorados.
Em 2021, 28 anos depois de ter dado entrada na Câmara do projeto para a extinção da reserva Yanomami, Bolsonaro esteve pessoalmente em uma área de garimpo ilegal, instalada dentro da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.
Bem ali ao lado, os Yanomamis definhavam. Na ocasião, o ex-presidente pagou as contas da viagem e da confraternização com os garimpeiros — 163 mil reais — com o cartão corporativo.
O resultado é o que estamos vendo todos nós, estarrecidos. De extinção da reserva, o plano passara a ser, tudo indica, o de extermínio total dos Yanomamis.